Eu vi.
Um assassínio lento e cruel.
No verão, quando as acácias se enchem de
flores, quanta beleza, paz e alegria ela espelhava. Quantas vezes, eu e outros
transeuntes, depois de uma longa caminhada, debaixo de um sol tórrido, parámos
de baixo da sua sombra para conversar ou comentar a última fofoca. Porém,
deixei-a morrer sem nada fazer. Dela resta apenas um pequeno cepo submerso num
montão de lixo.
Lembro-me que quando vim para esta flat, em 1976, já lá estava a bela
acácia, no lado oposto da rua. E eu, sempre que vinha à varanda apanhar um
pouco de fresco, ler ou simplesmente apreciar o vaivém das pessoas, o verde da
folhagem e as flores rubras, era um regalo para os olhos.
Nessa altura, cada flat da rua era habitada por uma média de cinco pessoas. Mas com o
decorrer do tempo passaram a albergar doze e até quinze.
Por vezes é o chefe da família com as
suas duas mulheres, cada uma com quatro ou mais filhos. E ainda há que contar
com os irmãos vindos da província, as mulheres destes e os filhos.
Os primeiros a não suportar tamanha
sobrecarga foram os esgotos. Os quintais inundavam-se de fezes e o prédio onde
eu vivo não foi excepção. Depois de uma luta renhida com os serviços de
salubridade consegui que, numa bela manhã me enviassem um camião para
desentupir a fossa.
A criançada, incluindo o meu filho
Zezinho, seguiu o camião e postou-se bem juntinho do tubo que puxava a
porcaria. De repente, este soltou-se e encharcou os miúdos de fezes. Ficaram
numa aflição tamanha que já não sabiam se corriam para dentro de casa ou se
despiam a roupa ali mesmo, diante de toda a gente que se ria deles à
gargalhada. Acabaram por despir-se e lavar-se na casa de banho externa.
Outro problema é o lixo que acabou por
ser a causa do assassínio da bela acácia. Junto dela foi posto um grande tambor
que até certa altura sempre chegou para os moradores depositarem o lixo. Mas,
tal como aconteceu com as fossas, foi-se tornando insuficiente para conter o
lixo produzido por tanta gente. Este passou a transbordar e espalhar-se pelo
chão, sufocando o tronco da acácia.
E até hoje é um espectáculo triste ver as
crianças a vasculhar os sacos de lixo à procura dos mais variados objectos que
depois exibem como troféus.
No prédio ao lado vive uma estrangeira
que se diverte a lançar rebuçados e pastilhas elásticas para os miúdos. Estes
deixam, por uns momentos, de esgravatar o lixo e lançam-se numa disputa pelas
guloseimas para logo a seguir voltarem ao lixo.
Um dia, a mesma senhora estrangeira dos
rebuçados e pastilhas elásticas atirou um embrulho muito bem feito, atado com
uma fita de sisal. O Nando abarbatou imediatamente mas teve que disputá-lo com
o Minho e o Lito. Acabaram por desfazê-lo e encontraram lá dentro um saco
plástico contendo pensos higiénicos sujos.
A maior parte da vizinhança é gente capaz
de coabitar pacificamente com o lixo pois, ao lado deste, foi progredindo um
mini dumba-nengue[1] onde senhoras e crianças, munidas de
coolmans de isotérmicos e tabuleiros, vendem cerveja, vinho, refresco, amendoim
torrado, mabadjia, pão com mahante (camarão), matotitori (doce de coco) e cigarros.
As crianças parecem não ter outro
entretenimento para além das vendas e disputa do lixo. Também não sei a que
horas dormem pois quando acordo já estão junto a lixeira com os seus produtos
para vender e, quando me deito, por volta da meia-noite, ainda lá se encontram
à espera de algum cliente mais retardatário.
Entretanto o lixo foi-se acumulando,
transbordando do tambor, até que acabou por submergir o tronco da acácia. O
carro dos serviços municipais passava cada vez com menos frequência. Um cheiro
nauseabundo (parecia até carne podre) inundou a rua, entrando pelas casas. E os
transeuntes que dantes procuravam a sua sombra, passavam a evitar a pobre
acácia.
Um dia, de madrugada, apesar de ter as
janelas fechadas por causa do mau cheiro, acordei com o quarto cheio de fumo,
sem poder respirar. Tinha sido o vizinho do prédio em frente que, desesperado,
regou com petróleo e ateou fogo sobre o lixo que, durante a noite, foi ardendo
juntamente com o tronco indefeso da acácia.
De manhã, o lixo estava quase todo
queimado mas a acácia tinha o tronco todo dividido, exibindo uma cintura fina
de mulher negra.
Durante algum tempo ainda lutou por viver
mas a acumulação de novo lixo acabou por sufocá-la de vez.
Hoje, apenas sujidade e mau cheiro se
encontram no lugar onde resplandecia a bela acácia que eu vi morrer lentamente,
com a cumplicidade dos moradores desta rua.
2º PREMIO do CONCURSO
3 MULHERES 3
CONTOS
COMISSÃO NACIONAL da UNESCO 1996
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