Mal cantava o galo, ainda quase noite, soava a pala-pala para
despertar todos os negros para irem trabalhar nas plantações. Não havia velhos
nem crianças, todos tinham que ir.
De tronco nu, encurvados, colhiam algodão durante horas
seguidas. Para enganar o cansaço e a dor. Entoavam cânticos de revolta e
desespero sem nunca interromper o trabalho. Sipaios e indunas[1],
de chicote em punho, velavam para que ninguém se atrevesse sequer a erguer o
tronco.
Nesse dia, Facela, que tinha um menino de colo, cansada de o
ter nas costas, lá para o fim da manhã, escoltada por um sipaio, foi deixá-lo
debaixo de um cajueiro.
À tardinha pediu para
ir amamentar o seu bebé, mas encontrou-o morto. Tinha sido mordido por uma
serpente.– Nyandaieiooouuu… – gritou Facela – Nyandaieiooouuu…!
Sem mesmo esperar pela autorização do sipaio, um grupo de
trabalhadores interrompeu o trabalho e juntou-se a Facela.
As mulheres e as crianças choraram com ela e os homens tiraram
os chapéus de palha e encurvaram-se perante pequeno cadáver.
O respeito pela morte foi mais forte que o medo das chicotadas.
Entretanto, como de costume, o sr. Administrador passeava no seu jeep procurando com os olhos ávidos
alguma negrinha que lhe agradasse para a levar a abusar dela, na tenda sempre
preparada para o seu repouso. Era assim sempre que lhe apetecia, não se
importava se a jovem era casada ou mesmo se trabalhava com o marido na mesma
plantação. E ninguém podia falar.
Vezes sem conta as raparigas depois de abusadas pelo sr.
Administrador, eram eternamente rejeitadas pelos maridos. Houve até o caso
recente de Madakwadjane que casara havia menos de um mês com Kavatane, numa
Igreja Zione em Chidenguele, viu a sua amada sendo levada no jeep pelo sr. Administrador e ali mesmo
decidiu que não podia suportar calado tamanha humilhação. Escapou ao controle
dos sipaios e indunas e, ao fim do dia, foi encontrado com uma corda ao pescoço
pendente num dos ramos de uma mafurreira.
Embora por razões bem mais inofensivas que as do sr.
Administrador, D. Violante, sua mulher, também gostava de percorrer as
plantações de algodão que pareciam uma esteira branca estendida no solo e de
ananases que se estendiam a perder de vista.
Tinha o hábito de, pelo
menos duas vezes por semana passear, não de jeep
mas refastelada numa padiola, carregada por quatro negros previamente
escolhidos pela sua boa constituição física. Era uma mulher que pesava mais de
150 kgs., de largo traseiro e avantajados seios a contrastar com a cabeça
minúscula. Protegia-se do sol com um chapéu de abas largas e, semi-deitada na
padiola, regalava os olhos com a paisagem enquanto devorava guloseimas que
sempre levava consigo.
No dia em que o Facela encontrou o filho morto, picado por uma
serpente, fazia um calor abrasador. Porém, D. Violante não dispensou o seu
passeio, obrigando os homens que a carregavam na padiola a percorrer as
plantações durante horas, enquanto ela, com a cesta cheia de guloseimas, se
deliciava com um leque.
Exaustos, com os ombros
esmagados de peso que suportavam e o corpo coberto de suor, e sem qualquer
combinação prévia, no meio da plantação de ananás, os homens deram um jeito à
padiola que imediatamente se quebrou ao meio.
Apanhada de surpresa, D. Violante caiu desamparada sobre as
folhas cortantes dos ananases que, quanto mais ela tentava levantar-se mais
deliberavam as fartas carnes.
Com os olhos arregalados, fingindo temor e pena, os quatro
homens continham a custo as gargalhadas, nem sequer procuravam ajudá-la a
levantar-se, pois “nenhum negro podia tocar na mulher do senhor Administrador”.
Depois de muito
esforço, e coberta de rasgões ensanguentados, D. Violante conseguiu erguer-se e
caminhar penosamente seguida dos quatro homens, até a tenda do marido. Quando
este tomou conhecimento do sucedido mandou espancar os negros até sangrarem.
Todavia eles jamais confessaram terem quebrado propositadamente a padiola.
O certo é que o dia em que encontraram o filho do Facela
morto, picado por uma serpente, foi também o dia do último passeio de D.
Violante.
FIM
O conto que narrei, é
inedito. Reflecte a dura crueldade que os trabalhadores negros das plantações
em Moçambique eram submetidos pelos colonialistas. Vexames, humilhações moral e
física. Mostra também, a solidariedade
humana dos subjugados. Assim, a rebelião silenciosa exercida por não se
conformarem com os opróbrios a que eram submetidos.
Sem comentários:
Enviar um comentário