sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A MORTE DA BELA ACÁCIA
















(Prémio Fundac, 1996)

Assassinaram-na.
Eu vi.
Um assassínio lento e cruel.
No verão, quando as acácias se enchem de flores, quanta beleza, paz e alegria ela espelhava. Quantas vezes, eu e outros transeuntes, depois de uma longa caminhada, debaixo de um sol tórrido, parámos de baixo da sua sombra para conversar ou comentar a última fofoca. Porém, deixei-a morrer sem nada fazer. Dela resta apenas um pequeno cepo submerso num montão de lixo.
Lembro-me que quando vim para esta flat, em 1976, já lá estava a bela acácia, no lado oposto da rua. E eu, sempre que vinha à varanda apanhar um pouco de fresco, ler ou simplesmente apreciar o vaivém das pessoas, o verde da folhagem e as flores rubras, era um regalo para os olhos.
Nessa altura, cada flat da rua era habitada por uma média de cinco pessoas. Mas com o decorrer do tempo passaram a albergar doze e até quinze.
Por vezes é o chefe da família com as suas duas mulheres, cada uma com quatro ou mais filhos. E ainda há que contar com os irmãos vindos da província, as mulheres destes e os filhos.
Os primeiros a não suportar tamanha sobrecarga foram os esgotos. Os quintais inundavam-se de fezes e o prédio onde eu vivo não foi excepção. Depois de uma luta renhida com os serviços de salubridade consegui que, numa bela manhã me enviassem um camião para desentupir a fossa.
A criançada, incluindo o meu filho Zezinho, seguiu o camião e postou-se bem juntinho do tubo que puxava a porcaria. De repente, este soltou-se e encharcou os miúdos de fezes. Ficaram numa aflição tamanha que já não sabiam se corriam para dentro de casa ou se despiam a roupa ali mesmo, diante de toda a gente que se ria deles à gargalhada. Acabaram por despir-se e lavar-se na casa de banho externa.
Outro problema é o lixo que acabou por ser a causa do assassínio da bela acácia. Junto dela foi posto um grande tambor que até certa altura sempre chegou para os moradores depositarem o lixo. Mas, tal como aconteceu com as fossas, foi-se tornando insuficiente para conter o lixo produzido por tanta gente. Este passou a transbordar e espalhar-se pelo chão, sufocando o tronco da acácia.
E até hoje é um espectáculo triste ver as crianças a vasculhar os sacos de lixo à procura dos mais variados objectos que depois exibem como troféus.
No prédio ao lado vive uma estrangeira que se diverte a lançar rebuçados e pastilhas elásticas para os miúdos. Estes deixam, por uns momentos, de esgravatar o lixo e lançam-se numa disputa pelas guloseimas para logo a seguir voltarem ao lixo.
Um dia, a mesma senhora estrangeira dos rebuçados e pastilhas elásticas atirou um embrulho muito bem feito, atado com uma fita de sisal. O Nando abarbatou imediatamente mas teve que disputá-lo com o Minho e o Lito. Acabaram por desfazê-lo e encontraram lá dentro um saco plástico contendo pensos higiénicos sujos.
A maior parte da vizinhança é gente capaz de coabitar pacificamente com o lixo pois, ao lado deste, foi progredindo um mini dumba-nengue[1] onde senhoras e crianças, munidas de coolmans de isotérmicos e tabuleiros, vendem cerveja, vinho, refresco, amendoim torrado, mabadjia, pão com mahante (camarão), matotitori (doce de coco) e cigarros.
As crianças parecem não ter outro entretenimento para além das vendas e disputa do lixo. Também não sei a que horas dormem pois quando acordo já estão junto a lixeira com os seus produtos para vender e, quando me deito, por volta da meia-noite, ainda lá se encontram à espera de algum cliente mais retardatário.
Entretanto o lixo foi-se acumulando, transbordando do tambor, até que acabou por submergir o tronco da acácia. O carro dos serviços municipais passava cada vez com menos frequência. Um cheiro nauseabundo (parecia até carne podre) inundou a rua, entrando pelas casas. E os transeuntes que dantes procuravam a sua sombra, passavam a evitar a pobre acácia.
Um dia, de madrugada, apesar de ter as janelas fechadas por causa do mau cheiro, acordei com o quarto cheio de fumo, sem poder respirar. Tinha sido o vizinho do prédio em frente que, desesperado, regou com petróleo e ateou fogo sobre o lixo que, durante a noite, foi ardendo juntamente com o tronco indefeso da acácia.
De manhã, o lixo estava quase todo queimado mas a acácia tinha o tronco todo dividido, exibindo uma cintura fina de mulher negra.
Durante algum tempo ainda lutou por viver mas a acumulação de novo lixo acabou por sufocá-la de vez.
Hoje, apenas sujidade e mau cheiro se encontram no lugar onde resplandecia a bela acácia que eu vi morrer lentamente, com a cumplicidade dos moradores desta rua.


2º PREMIO do CONCURSO
 3 MULHERES    3   CONTOS
COMISSÃO NACIONAL da UNESCO 1996





[1] Mercado informal

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