quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O ÚLTIMO PASSEIO DE D. VOLANTE


Mal cantava o galo, ainda quase noite, soava a pala-pala para despertar todos os negros para irem trabalhar nas plantações. Não havia velhos nem crianças, todos tinham que ir.
De tronco nu, encurvados, colhiam algodão durante horas seguidas. Para enganar o cansaço e a dor. Entoavam cânticos de revolta e desespero sem nunca interromper o trabalho. Sipaios e indunas[1], de chicote em punho, velavam para que ninguém se atrevesse sequer a erguer o tronco.
Nesse dia, Facela, que tinha um menino de colo, cansada de o ter nas costas, lá para o fim da manhã, escoltada por um sipaio, foi deixá-lo debaixo de um cajueiro.
 À tardinha pediu para ir amamentar o seu bebé, mas encontrou-o morto. Tinha sido mordido por uma serpente.– Nyandaieiooouuu… – gritou Facela – Nyandaieiooouuu…!
Sem mesmo esperar pela autorização do sipaio, um grupo de trabalhadores interrompeu o trabalho e juntou-se a Facela.
As mulheres e as crianças choraram com ela e os homens tiraram os chapéus de palha e encurvaram-se perante pequeno cadáver.
O respeito pela morte foi mais forte que o medo das chicotadas. Entretanto, como de costume, o sr. Administrador passeava no seu jeep procurando com os olhos ávidos alguma negrinha que lhe agradasse para a levar a abusar dela, na tenda sempre preparada para o seu repouso. Era assim sempre que lhe apetecia, não se importava se a jovem era casada ou mesmo se trabalhava com o marido na mesma plantação. E ninguém podia falar.
Vezes sem conta as raparigas depois de abusadas pelo sr. Administrador, eram eternamente rejeitadas pelos maridos. Houve até o caso recente de Madakwadjane que casara havia menos de um mês com Kavatane, numa Igreja Zione em Chidenguele, viu a sua amada sendo levada no jeep pelo sr. Administrador e ali mesmo decidiu que não podia suportar calado tamanha humilhação. Escapou ao controle dos sipaios e indunas e, ao fim do dia, foi encontrado com uma corda ao pescoço pendente num dos ramos de uma mafurreira.
Embora por razões bem mais inofensivas que as do sr. Administrador, D. Violante, sua mulher, também gostava de percorrer as plantações de algodão que pareciam uma esteira branca estendida no solo e de ananases que se estendiam a perder de vista.
 Tinha o hábito de, pelo menos duas vezes por semana passear, não de jeep mas refastelada numa padiola, carregada por quatro negros previamente escolhidos pela sua boa constituição física. Era uma mulher que pesava mais de 150 kgs., de largo traseiro e avantajados seios a contrastar com a cabeça minúscula. Protegia-se do sol com um chapéu de abas largas e, semi-deitada na padiola, regalava os olhos com a paisagem enquanto devorava guloseimas que sempre levava consigo.
No dia em que o Facela encontrou o filho morto, picado por uma serpente, fazia um calor abrasador. Porém, D. Violante não dispensou o seu passeio, obrigando os homens que a carregavam na padiola a percorrer as plantações durante horas, enquanto ela, com a cesta cheia de guloseimas, se deliciava com um leque.
 Exaustos, com os ombros esmagados de peso que suportavam e o corpo coberto de suor, e sem qualquer combinação prévia, no meio da plantação de ananás, os homens deram um jeito à padiola que imediatamente se quebrou ao meio.
Apanhada de surpresa, D. Violante caiu desamparada sobre as folhas cortantes dos ananases que, quanto mais ela tentava levantar-se mais deliberavam as fartas carnes.
Com os olhos arregalados, fingindo temor e pena, os quatro homens continham a custo as gargalhadas, nem sequer procuravam ajudá-la a levantar-se, pois “nenhum negro podia tocar na mulher do senhor Administrador”.
 Depois de muito esforço, e coberta de rasgões ensanguentados, D. Violante conseguiu erguer-se e caminhar penosamente seguida dos quatro homens, até a tenda do marido. Quando este tomou conhecimento do sucedido mandou espancar os negros até sangrarem. Todavia eles jamais confessaram terem quebrado propositadamente a padiola.
O certo é que o dia em que encontraram o filho do Facela morto, picado por uma serpente, foi também o dia do último passeio de D. Violante.

FIM
O conto que narrei, é inedito. Reflecte a dura crueldade que os trabalhadores negros das plantações em Moçambique eram submetidos pelos colonialistas. Vexames, humilhações moral e física. Mostra  também, a solidariedade humana dos subjugados. Assim, a rebelião silenciosa exercida por não se conformarem com os opróbrios a que eram submetidos.



[1] Um auxiliar do régulo ou chefe tradicional. C. F. Lopes et al, 2002 : 75.

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