quarta-feira, 8 de outubro de 2014

UM CRIME NA COSTA DO SOL


Julinho muito jovem veio de Chidenguele para a cidade de Lourenço Marques onde trabalhou como empregado doméstico em casas ricas, o que lhe facilitou estudar à noite.
Com a sexta classe feita, e com a mãozinha de um ex-patrão conseguiu ingressar nos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM) como factor. Ser factor dos CFM era bom demais para um jovem negro naquela altura.
Em pouco tempo Julinho tirou a carta de condução. A prestações comprou um Fiat em terceira mão, de um colega transferido para Quelimane. Graças ao mesmo patrão, foi-lhe atribuído pelos CFM uma casinha de dois quartos e sala. Era muito mais do que o Julinho sonhara.
Depois das horas de trabalho, no seu Fiat, circulava pela cidade inteira, com particular incidência junto às escolas para apreciar a chamar a atenção das raparigas.
A saída da escola, as raparigas lutavam por ele. Era dos rapazes mais disputados da cidade.
No seu minúsculo apartamento, era constantemente visitado por meninas, o que fez tremer um pouco a sua posição, pois alguns colegas seus, movidos por ciúmes e também porque não achavam bem, começaram a chamar matadouro a sua casa.
Ninguém gostava de ver as jovens estudantes a frequentar a casa daquele solteirão. Corria o risco de perder a casa quando, para surpresa de todos, meteu férias e foi para Chidenguele, sua terra natal, de onde voltou casado com uma rapariga de rara beleza.
Martinha era seu nome. Julinho tinha prazer em exibi-la em toda a parte, pois na verdade com a sua presença ela suscitava inveja a homens e mulheres.
Os filhos não tardaram a chegar. Em cinco anos, Martinha já ia no quarto filho, tendo tido no primeiro parto um casal de gémeos, um ano depois pariu outras duas, tendo uma nascida em Janeiro e a outra em Novembro.
Julinho começou a fugir de casa. Não suportava o choro constante das crianças e Martinha não conseguia gerir sozinha a ninhada que criara.
Julinho voltara a tomar o gosto pelos passeios com as meninas no seu Fiat e Martinha chorava noite e dia. Não se conformava que o seu marido andasse com outras e mesmo nas suas barbas.
Para o cúmulo, ele já nem dava dinheiro suficiente para as despesas da casa. O caril então era um quebra-cabeças, pois o rancho mensal lá conseguia levantar na loja do senhor Manuel, pois Julinho, no fim de cada mês, deixava o suficiente para o pagar. Mas nem mais um centavo!
A vida do casal foi-se deteriorando. Não havia o mínimo de entendimento, e ainda com o agravante de o custo de vida subir diariamente.
Para conseguir ter algum caril por vários dias, Martinha ganhou o hábito, como muita gente de Maputo, de ir a praia comprar peixe acabado de sair do mar, o qual conservava no congelador.
E foi nas idas à compra de peixe que ela conheceu Zeca.
O aparecimento de Zeca na sua vida, começou a significar muito para ela. Era um amigo e um confidente atento e carinhoso. Nunca conhecera ninguém assim em toda a sua vida, pois o seu namoro com Julinho foi tão breve que a cada dia que passava ficava com a convicção de que era um desconhecido que a havia procurado apenas para reprodutora dos seus filhos e governanta da sua casa.
A boleia de Zeca passou a ser uma constante.
Martinha sentia-se bem com Zeca e embora soubesse que se tratava de um amor proibido, em breve se tornaram amantes. Sempre que ia à praia comprar peixe, Martinha aproveitava a agradável companhia de Zeca que a enchia de lembranças e até de jóias valiosas.
Já nem se preocupavam com o que as pessoas dissessem ou pensassem, nem mesmo com Julinho que estava sempre ausente.
Tinham inovações fantásticas ao fazerem amor. Era num quarto de pensão, era no carro, na floresta, era onde a imaginação lhes ditasse e aí mesmo faziam amor.
Naquele dia, à hora do costume, Martinha saiu de casa com o cesto habitual para comprar peixe. Porém, não voltou mais. Não voltou à noite, como acontecia sempre. Pela primeira vez Julinho deu por falta da mulher. Depois do trabalho era habitual passar por casa mudar de roupa. Dessa vez, foi acolhido pela surpresa de bagunça dentro de casa e um choro descontrolado das crianças. Julinho não queria acreditar na ausência de sua mulher, todavia a noite passou e veio a manhã sem notícias de Martinha. Julinho foi trabalhar, mas a meio da manhã deu uma escapada a casa e nada de Martinha.
Martinha desaparecera. Espalhada a notícia, a vizinhança especulava dizendo cada um o que entendia. Havia quem confirmasse ter a certeza absoluta de ela ter fugido com o homem do Subarú.
Julinho percorreu hospitais, cadeias, até na morgue foi procurar Martinha.
A alegria de Julinho desaparecera, pois de qualquer modo sentia o seu orgulho de macho ofendido.
Não sabia em que pensar, porque para ele a Martinha de facto era aquela mulherzinha submissa que ficava em casa a cuidar dos filhos.
Era difícil pensar doutra maneira. Os miúdos lá do bairro conheciam muito bem o Subarú que dava boleia a tia Martinha e até tinham a matrícula. Era assunto dos mais velhos sim senhor mas algumas vezes, a caminho da escola, viram o Subarú com o mesmo homem que costumava sair com a tia Martinha.
Qualquer coisa não estava bem. A tia Martinha não podia abandonar crianças tão pequenas e fugir com um homem. Mas com quem fugiria, se a última vez que ela foi vista foi a sair com o homem do Subarú? Como é que se justifica ela não aparecer e ele a andar por aí?
Já passavam alguns dias sobre o desaparecimento da vizinha quando um grupo de jovens, à revelia dos pais, se dirigiu a casa do Julinho e, depois de muita hesitação, pediram desculpas e falaram-lhe do homem do Subarú.
Julinho não queria acreditar no que estava a ouvir. Admitir que aquela Martinha, toda submissa, pudesse ter um amante, era a última coisa que esperava ouvir na vida. Todavia, perante as evidências, tinha que aceitar qualquer coisa para servir de base para as buscas da desaparecida. É assim que baseando-se das afirmações dos jovens, dirigiu-se à polícia e revelou o que lhe havia sido contado.
Não foi difícil localizar o Subarú e o seu proprietário que foi imediatamente notificado pela polícia. Na esquadra, a princípio quis negar que conhecesse Martinha, porém não foi longe porque Julinho fazia-se acompanhar dos garotos lá do bairro que até estavam adorando a oportunidade de subirem no carro do titio Julinho. Os jovens reafirmaram, na presença da polícia, conhecerem o carro e o proprietário e que a última vez a que a titia Martinha tinha sido vista no bairro foi a entrar no Subarú com o senhor ali presente.
Zeca estava muito nervoso o que facilmente o denunciou como estando a esconder qualquer coisa. Estava-se em plena década de oitenta, o chamboco[1] ajudava muito a aclarar a amnésia intencional de muita gente.
Zeca foi severamente sovado pela polícia, mas sempre negando qualquer envolvimento com o desaparecimento de Martinha.
A princípio gritava em português: ai Jesus, aí minha nossa, ai Jesus…ai minha Nossa Senhora de Agrélia, ai Jesus… não tenho nada a ver com essa mulher. Mas a surra foi tanta que a fineza de Zeca desapareceu e gritou… Nyandayeeeiiiooouuu[2], Nyandayeeeiiiooouuu! Parem de me bater que eu já vos digo o que se passou – e começou a chorar.
Amei muito essa mulher, começou ele, chorando como uma criança. Foi talvez a única mulher que amei na vida. Continuou evocando, quase sonhadoramente o seu passado com Martinha.
Era uma mulher adorável, meiga e ingénua. Levei muito tempo para convencê-la a ser minha, pois embora uma mulher sofrida, tinha muita dignidade.
Amei-a na cama, na rua, no carro e em muitos sítios que vocês nem podem imaginar. Naquele dia, depois de comprarmos o peixe fomos dar uma volta até ao bairro dos Pescadores. Ela estava tão alegre, bela e tão feliz. Passava um pouco das dezoito horas e estava um luar muito bonito. Saímos do carro e o mundo, de um momento para o outro, tornou-se somente nosso. Não pensámos em mais nada nem em mais ninguém, e ali mesmo no chão, sobre o manto verde das ervas daninhas que o cobriam, amamo-nos.
Foi um momento sublime, único ou assim parecia ser porque Martinha delirava gemendo de prazer, mas de repente, estremeceu e ficou seca, inerte. Não entendi logo, muito tempo depois apercebi-me de que qualquer coisa de errado se estava a passar. Sacudi-a, gritei e chorei até não poder mais, porém logo a seguir entrei em pânico, pois constatei que ela estava morta.
Estava morta e não compreendia o que teria acontecido, mas ela estava morta, disso eu não tinha dúvidas.
Não sei quanto tempo fiquei com ela no meu colo chorando, mas logo comecei a pensar que tinha que fazer qualquer coisa. Por mera casualidade, eu trazia no carro uma pá e como não passasse ninguém por perto, fiz uma cova e enterrei a minha amada.
Que a justiça seja feita. Estou pronto. Acabo de tirar um grande peso de dentro de mim.
No minúsculo apartamento da esquadra, até os polícias habituados a ouvir de tudo, até as estórias mais macabras ficaram impressionados com a triste estória. Fizeram-se todas as diligências legais necessárias e dirigiram-se ao local indicando por Zeca. Lá estava o corpo enterrado. Depois da autópsia, ficou provado que Martinha fora picada, na coluna vertebral, por uma cobra venenosa. O lugar onde se deitara a fazer amor, escondia-se uma toca onde vivia uma cobra venenosa que a picou provocando morte instantânea por asfixia.
Com um cortejo bastante concorrido Martinha foi a enterrar no cemitério de Lhangene, onde descansa em paz.
Zeca foi julgado e condenado a uma pesada pena por obstrução de provas de um crime.




[1] Chicote feito de borracha ou de plástico para administrar punição. C. F. Lopes et al, 2002: 45

[2] Socorro

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